Não sei quando eu assisti o Antônio Abujamra na TV Cultura lendo um trecho do clássico “Eu sei, mas não devia” da Marina Colasanti. Eu era bem jovem. Aquela leitura me encheu de energia, revolta e tantos outros sentimentos embaralhados. Eu considero que aquilo foi um marco para o intenso processo de desenvolvimento que viria em seguida - minha faceta ativista.
No início, os sentimentos despertados pelo texto ganharam muito espaço na minha cabeça e pouco espaço na vida concreta. Comecei fazendo o delicioso ativismo de sofá. Foi só quando eu experimentei no corpo uma coisa tão costumeira quanto absurda - a cesárea agendada sob coação que interrompeu a gravidez do meu primeiro filho antes que ela terminasse de fato - que eu saí da cabeça e fui para o corpo. Percebi o que era a teoria da misoginia vivida na prática. Isso que eu chamava de ativismo então me dominou por inteiro. E eu passei quinze anos imersa em suas doces e amargas águas.
Minha avó era feminista e não sabia. Eu sou parte de uma longa linhagem de mulheres inconformadas e desobedientes, com traços de bruxaria que não conseguimos nunca esconder e muito ingovernáveis para sermos queridas. Somos todas historicamente percebidas como amargas, mal educadas, brutas e diretas demais. O ativismo era então o lugar perfeito para a minha personalidade combativa, minha rabugice, minhas altas habilidades lógicas e um certo prazer por conflito teórico (eu continuo amando um bate boca e tendo a achar agressão física coisa de gente involuida, no entanto já vi contextos onde só o corpo resolve). “Essa não larga o osso” minha mãe costumava dizer de mim.
Do sofá eu fui para as ruas, praças e conselhos escolares e municipais. Direcionei minha participação no que eu achava ser “colaborar com a mudança do mundo” para a esfera da política institucional. Me envolvi até os cabelos com um movimento de renovação política e acabei ajudando a eleger um monte de gente que depois que eu conheci de perto só posso nutrir desgosto. Ainda assim, eu tinha convicção de que havia um chamado, uma razão, uma necessidade para a minha atividade com tons de superioridade por conta do sufixo. Ismo. É feminismo. É ativismo. É marxismo. É pluralismo.
Eu brigava abertamente com parlamentares que defendiam processos que eu considerava (e sigo considerando) nocivos para mulheres e bebês. Desviava com elegância tácita das solicitações de correligionários para que eu incluísse na minha plataforma política a ideia de que homens podem ser mães. Enquanto ao mesmo tempo lutava inutilmente para abrir espaço de discussão política para mães cujos filhos estão sob a guarda de seus pais pedófilos. As pessoas me olhavam como se meus temas de trabalho - maternidade, infância e natureza - se tratassem de um conto de fadas com balões coloridos e fotos do Patati Patatá. O tanto de paternalismo e tapinha na cabeça que eu aguentei não está escrito. Enquanto a minha vida cotidiana era receber pedidos de ajuda sobre estupros, violência doméstica, tráfico sexual, casamento infantil, abandono de crianças, violência contra crianças nas escolas que eu tanto defendia.
Eu me mantinha atônita com a imensidão da minha insignificância diante de sistemas tão adoecidos, engolia o meu choro e buscava caminhos para ação. Como todo ativista. E quando eu olhava o grupo a quem eu ajudei eleger, eles estavam preocupados em como ser eleitos de novo em dois anos. Então eu questionava as gestões partidárias suspeitas e apontava toda a misoginia contida nas estruturas, minha raiva crescia. Ao mesmo tempo, gastava uma energia imensa para esconder tudo o que podia sobre a podridão daquele sistema das mulheres que ao longo dos anos se encantaram com essa minha energia de partir para a ação, e votaram em mim. Porque eu não queria que elas tivessem o coração despedaçado como o meu estava. Porque eu não queria desapontá-las.
Então a vida aconteceu. A vida e a morte. Pouquíssimo tempo depois da entrada naquele mandato meu pai morreu. Minha mãe entrou em depressão. Meu marido perdeu o emprego. O meu emprego temporário estava instável. Eu não tinha essa gana de fazer carreira, de fazer conchavo para garantir a próxima eleição. Eu queria políticas públicas decentes para mulheres e crianças e não conseguia me relacionar com a moral flexível de muitas das pessoas com quem eu era obrigada a conviver, por ter acreditado que era possível formar uma aliança pluripartidária para eleger ativistas ao legislativo. Isso aí tudo foi responsabilidade minha. Eu que me meti nessa encrenca porque eu acreditei. Fui ingênua.
A extrema direita estava eleita no executivo federal e daí pra frente foi só para baixo. Eu comecei a receber ameaças veladas dentro das escola dos meus filhos por membros de partidos aos quais eu oferecia oposição. Surpresa, surpresa, até ali eu acreditava que minha casa política era a esquerda. Devo deixar bem claro que não eram os corruptos e insensatos membros dos partidos da extrema direita que me pediam para “ter cautela” afinal “seu filho adora essa escola”. Eram os corruptos e insensatos de partidos aliados. O fogo era amigo. O pior e melhor tipo de fogo, ele quebra a tua fé nos ser humano mas também te ensina a não ser idiota. O Reino Unido decidiu sair da Europa e essa foi a bala de prata para a minha família decidir sair do Brasil. E virei um tipo estranho de exilada política no campo ideológico. Entre direita e esquerda, eu continuava mulher. Saudades do tempo que me acusavam de desertora, no futuro eu ouviria muito pior.
Com meu passaporte italiano em mãos - um salve eterno de gratidão à minha mãe por doze anos de pesquisa dedicados a encontrar antepassados, corrigir registros e rastrear nossa origem para me presentear com uma das melhores heranças que ela poderia deixar: memória e um passaporte extra - meu marido e eu vendemos tudo o que havia dentro da nossa amada casa. Colocamos tudo o que não conseguiríamos nos desfazer (a saber, quilos de livros infantis em português e dezenas de brinquedos dos meus filhos porque eu só queria saber de fazer a transição para eles o mais suave possível) em dez caixas de papelão. E atravessamos o oceano para morar em uma ilha, onde eu me reuniria finalmente com a minha irmã. Um marido, três filhos, dez caixas. Fomos todos morar na terra do Elton John. Eu não tinha emprego, eu não tinha uma grande rede. Eu não tinha poupança. Eu nunca tive poupança. Todo o dinheiro que eu ganhava com atividades de freelancer durante meus anos ativistas eu comia. E se sobrasse algum caraminguá ele era direcionado para doações, campanhas e subsídios das causas que eu acreditava. Quando eu saí do Brasil eu não tinha nada material. Só meu corpo, e minha certeza. E eu tinha também uma mãe e uma irmã que foram e sempre serão meu esteio. Esses bens são imateriais. Já se vão cinco anos.
Ali eu estava decidida que nunca mais participaria de ativismo nenhum na minha vida. Depois de um tempo de profunda depressão eu fiz a primeira de muitas tentativas de olhar para dentro. Para mim. Para minha família. Viver uma vida corporificada e afinada com o mundo natural. Aquele foi o começo do fim do meu ativismo. Anos e anos dedicada a causas super nobres e sem nenhum impacto real se não o meu próprio adoecimento. Meus filhos estudando em escolas públicas terríveis cuja proposta pedagógica na primeira semana de aula de volta das férias era passar cinco dias fazendo desenhos sobre as férias. Os desenhos voltavam para casa em pilhas de papel sulfite onde se via a mesma ilustração: os garotinhos sentados embaixo de uma mesa enquanto os pais deles participavam de reuniões políticas. Uma foto fiel da vida cotidiana dos meus filhos: acompanhar os pais em mobilização política. Nenhum impacto real se não o abandono dos meus filhos.
Meu marido trabalhou de lavador de pratos e entregador por meses e segurou toda a onda financeira da casa que minha irmã ajudou a alugar e uma desconhecida, que se tornou amiga, endossou como fiadora. Ela se compadeceu da história do casal mudando de país com três filhos. Assim que as crianças estavam adaptadas na nova escola eu comecei a procurar um emprego. Minha meta era trabalhar em uma loja de artes e passar a vida em meio a cores e pincéis. Acabei fazendo testes também para decoração de calçados, pasmem, uma coisa muito estranha que acontece na cultura londrina, onde os turistas gostam de comprar tênis de lona pintados à mão. Eu fui rejeitada em todas as aplicações e testes que eu fiz. Até que apareceu uma oportunidade de trabalhar no setor de onde eu tinha fugido: mudar o mundo.
Relutante, eu apliquei para uma vaga em um laboratório experimental que trabalha com economias regenerativas, oriunda do setor de grandes fortunas. Em outras palavras, uma fundação familiar comprometida com regeneração. A cada estágio do longo processo de seleção eu fui aprendendo que o que eu chamava de ativismo no passado, a entrega profunda ao combate das coisas que eu considerava injustas, erradas, absurdas, era um caminho de auto-flagelo. Naquele novo ambiente talvez eu pudesse unir o útil ao agradável e promover melhorias ao meu alcance enquanto eu gerava renda para a minha família. A fundação me achou interessante e estamos juntos até hoje. Eu ganhei uma perspectiva maravilhosa sobre o poder das finanças e comecei a oferecer a maioria do meu tempo acordada em forma de força de trabalho em troca de recursos financeiros e muito mais que isso. Cresci, cresci demais trabalhando. No começo era apenas uma relação de trabalho. Continua sendo mas mudou ligeiramente. Com o tempo e quem sabe no futuro eu posso discorrer sobre isso. Eu vejo valor e propósito nesse trabalho. Eu amo meu trabalho (na maioria do tempo, só sinto muita falta dos pincéis e cores).
Nos meus primeiros salários eu decidi que nunca mais eu ia oferecer meu tempo acordada para mudar o mundo sem receber dinheiro de volta. Eu sempre achei que ativismo deveria ser voluntário, por que os interesses sobre os resultados podem ser muito contaminados quando se trata de uma atividade profissional. Estão aí as mulheres nas edições de jornais financiados pelos interesses das filantropias ideológicas internacionais (que pagam seu sustento) fingindo que acreditam que tudo bem para a sociedade se a gente passar a ignorar o sexo como marcador. Elas são a prova viva de que eu tenho razão nesse pensamento, mas agora que eu havia decidido que eu não precisava mais ser ativista, eu parei de dar ouvidos para ele. E pronto, estava decidida a focar na minha carreira, onde eu percebia impacto visível do meu trabalho em atividades que me traziam paz de espírito (ainda que eu siga muito questionadora, isso nunca vai mudar) e me sentia parte de algo maior. Agricultura Regenerativa, Movimento Indígena, Mulheres defensoras das Florestas, Espiritualidade, Novas Economias. Minhas horas fazendo reuniões imensas e criando planilhas e apresentações no computador passavam a fazer sentido, porque contribuíam para a alteração dos rumos em setores marginalizados alinhados com os meus valores e ainda por cima pagavam meu aluguel e colocavam comida na boca dos meus filhos, que estudam hoje em escolas suficientemente boas e nunca mais foram arrastados para a militância dos pais deles. Ótimo.
Porém a voz do Abujamra lendo Marina Colasanti veio me assombrar, e não demorou muito tempo. Na mesma época em que eu me recuperava dos meus problemas pessoais, superava a pandemia e pegava a minha vida para mim de volta, a treta do transativismo ganhou proporções internacionais. Óbvio, as pessoas passaram a viver uma vida online e descorporificada e começaram a acreditar nas baboseiras que o pseudo-jornalismo pautava para eles. Foram para o mundo das ideias mirabolantes confirmadas por algoritmos robóticos promovidas pela ascensão de outro ismo, esse desprezível, o wokeísmo. Observando o mundo desde uma perspectiva diferente agora, eu via minhas colegas de ativismo brasileiras uma a uma caindo no conto do vigário norteamericano de que é possível substituir o sexo de nascimento pela entidade fictícia da “identidade de gênero”. Mulheres inteligentes! Mulheres que enchiam a boca para falar de um feminismo “decolonial" e ao mesmo tempo recitavam palavras de ordem produzidas dentro de ongs corporativas do norte global que até hoje estão comprometidas com a manutenção de toda a exploração de todos os grupos. Grupos feministas que eu havia ajudado a construir, plataformas de mídia para quem eu havia doado o dinheiro que eu tirava de mim, da minha família e das minhas crianças. Fundações para quem eu tinha voluntariado gratuitamente. Todo mundo virou woke. Eu poderia me acostumar com isso, mas achei que não deveria.
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